Convidar o sujeito a nascer: a aposta da psicanálise no autismo



  Recentemente tenho lido sobre o atendimento psicanalítico de pessoas com autismo. Fiquei impressionada com a qualidade e quantidade de conhecimento que se produz hoje na psicanálise sobre o autismo e o atendimento clínico de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA). A Psicanálise cresce a cada dia, contando com a contribuição de psicanalistas criativos para o desenvolvimento de uma teoria e técnica cada vez mais condizente com a atualidade e que possa ser terapêutica para os pacientes. Gostaria de falar brevemente sobre o que a psicanálise propõe hoje para o tratamento de pessoas com autismo, mas antes quero fazer um parênteses. 

    É comum que a psicanálise seja criticada e até contra indicada, no caso do TEA, por profissionais da saúde. Penso que uma das causas seja a falta de conhecimento sobre como a psicanálise poderia contribuir para o desenvolvimento de pessoas com TEA. Mas mais que isso, me parece que o tratamento de pessoas com autismo já tem uma linha a ser seguida e qualquer ideia nova que surja é barrada antes mesmo de ser escutada. 

    Por outro lado a psicanálise é uma teoria de difícil leitura, já que são usados muitos termos técnicos que quando lidos pelo público leigo em psicanálise abrem margem para interpretações equivocadas.  Por isso, utilizei uma linguagem compreensível, mesmo porque essa é a forma como eu escrevo. Na verdade, se tratando de psicanálise, a disciplina que se propõe a nomear o não dito, faz sentido, a meu ver, que a linguagem seja tão acessível quanto possível. Quero ainda ressaltar que meu pensamento foi construído pelo livro Atendimento Psicanalítico do Autismo de Batistelli, Amorrim e colaboradores (2020) e algumas ideias de Winnicott. Vamos ao assunto que já proseei demais.

    Para a psicanálise contemporânea há o nascimento físico e o nascimento psíquico do sujeito, que acontecem em momentos distintos da vida. Quando nascemos somos dotados de um corpo com um coração que bate, um pulmão que respira e outras tantas estruturas que permitem a vida. Mas para que a vida psíquica possa acontecer, ou seja, para que possamos dar sentido e significado às sensações corporais é necessário alimento psíquico e uma potencialidade do próprio bebê. 

    Por alimento psíquico eu entendo a tradução que a mãe, pai ou cuidadores fazem para a criança do mundo, que é acompanhada de um ingrediente extremamente importante: o afeto, transmitido pelo tom da fala, pelo contato, pela alimentação, pelo olhar. Quando falo em potencialidade do próprio bebê penso em uma capacidade para receber e aproveitar o alimento psíquico, transformando as sensações corporais, ou seja, o que é apenas sensorial, em experiência emocional que poderá ser pensada futuramente, criando um mundo interno simbólico rico.  

    A psicanálise hoje entende que pessoas com autismo, por uma questão neurobiológica, nascem com a dificuldade de desenvolver um Eu que tenha essa capacidade de transformar sensações corporais em experiências emocionais e por fim em pensamentos. Mesmo que a mãe e demais cuidadores estejam muito dedicados nessa tarefa o nascimento psíquico do bebê ainda fica comprometido justamente por uma característica neurobiológica que afeta o desenvolvimento dessa capacidade simbólica. 

    É nesta alteração no percurso do desenvolvimento que acredito que a psicanálise possa ajudar as pessoas com TEA. Fazemos o trabalho de convidar o eu do paciente a nascer, nomeando sensações corporais antes nunca nomeadas, ajudando no nascimento de um aparelho psíquico que possa conter as emoções e pensar sobre elas. 

    Mesmo com a questão neurobiológica sendo a causa do desenvolvimento atípico de pessoas com autismo, vários campos da saúde já demonstraram ser capazes de ajudar no desenvolvimento de habilidades que antes se acreditava impossível para uma criança diagnosticada com TEA. 

    É consenso hoje que a condição biológica não deve ser tratada como incapacitante antes mesmo de que a pessoa com esse funcionamento singular possa ter acesso à programas de estimulação que auxiliem seu desenvolvimento. Não digo que essa diferença não existe, ou que será "curada", mas que várias áreas da saúde podem contribuir para a melhor qualidade de vida do paciente. Isso é o que ocorre no acompanhamento multiprofissional do autismo. 

    Acredito que a psicanalise está preparada para contribuir com o debate interdisciplinar. E penso que, enquanto profissionais da área da saúde, deveríamos deixar de lado nossas crenças e preconceitos com as diferentes áreas do saber em benefício de nossos pacientes. À psicanálise cabe o compromisso ético de respeitar a singularidade de cada paciente, sem com isso, deixar de apostar nas potencialidades que cada ser humano carrega.

Comentários

  1. Respostas
    1. Olá, agradeço a leitura e fico feliz que o meu texto tenha feito sentido para você. 😊

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  2. Muito válido Tamires. sua publicação.E que tento sempre explanar a área psicanalítica e valorizar.a sua contribuição na área da saúde.E que todas as linhas são bem vindas.Esse progresso só depende de paciente e profissional.Obrigada.

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  3. Muito obrigada pelo comentário! Fico feliz que tenha encontrado valor na publicação.
    Também acredito na importância de divulgarmos a psicanálise e, ao mesmo tempo, mantermos o diálogo aberto entre diferentes abordagens.
    É exatamente como você disse: o progresso acontece na relação entre paciente e profissional.
    Seja sempre bem-vinda/o por aqui!

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